sexta-feira, julho 22, 2005

Carta ao vento II

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Procurei você, meu amor, em cada átomo seu que está disperso no universo. Recolhi quantos deles me foi possível, na terra, no ar, no mar, nos olhares e nos gestos dos homens. Procurei você até mesmo nos curos, na longínquoa montanha de uma destas ilhas, só porque você uma vez me disse que tinha sentado no regaço de um curo. A subida não foi fácil. Havia um velho pastor pela estrada, e eu só lhe disse a única palavra que importava: curos.
E nos seus olhos brilhou uma luz de cumplicidade como se tivesse entendido, como se soubesse quem eu era e quem eu procurava, que eu procurava por você, e sem dizer nem uma palavra me estendeu a mão indicando-me o caminho, e recolhi o gesto que me guiou e aquela luz que brilhou um instante nos seus olhos e coloquei-os no bolso, olhe, estão aqui, são outras duas pedrinhas deste afresco em migalhas que estou recolhendo desesperadamente para reconstruir você, além do cheiro do homem com quem passei minhas noites.
[...] Entretanto eu lembrava de poesias que falavam de mares e de praças, um mar de telhas reluzentes que uma vez vi com você num cemitério, e uma pracinha onde as pessoas que viviam ali tinham visto o seu rosto, e assim mentalmente procurei-o no resplendor daquele mar porque você o tinha visto, e nos olhos do dono da mercearia, do farmacêutico, do velhinho que vendia café gelado naquela pracinha, porque eles o tinham visto. Estas coisas também coloquei no bolso, este bolso que sou eu mesma e os meus olhos.

Antonio Tabucchi, "Está ficando tarde demais"
Editora Rocco, 2004

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