sábado, julho 23, 2005

Carta ao vento III

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Tudo eu recolhi de você: migalhas, fragmentos, pó, pegadas, suposições, acentos que ficaram em vozes alheias, alguns grãos de areia, uma concha, o seu passado imaginado por mim, o nosso suposto futuro, o que eu teria querido de você, o que você tinha me prometido, os meus sonhos infantis, o enamoramento de criança que senti pelo meu pai, certas rimas tolas da minha juventude, uma papoula à beira de uma estrada empoeirada. Isso também eu pus no bolso, sabe?, a corola de uma papoula como aquelas papoulas que em maio eu ia colher nas colinas com meu Volkswagen, enquando você estava em casa grávido dos seus projetos, dedicando-se às receitas que sua mãe lhe havia deixado num livrinho preto escrito em francês, e eu colhia papoulas que você não sabia compreender.
Não sei se você depositou o seu sêmen dentro de mim ou vice-versa. Mas, não, nunca nenhum sêmen nosso floresceu. Cada um é só si próprio, sem a transmissão da carne futura, e eu sobretudo sem ninguém que recolha a minha angústia. Todas essas ilhas eu percorri, todas procurando por você. E esta é a última, como eu sou a última. Depois de mim, basta. Quem poderia continuar a procurá-lo senão eu?

Antonio Tabucchi, "Está ficando tarde demais"
Editora Rocco, 2004

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