quinta-feira, agosto 25, 2005

Dois lados

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Hoje me parece inexplicável que, tendo dominado nossas vidas ao longo de gerações, o problema da Palestina e de sua trágica perda [...] pudesse ser em tão grande medida sufocado por meus pais, omitido de suas discussões e mesmo de seus comentários. [...] Meu pai e nós, seus filhos, estávamos todos protegidos da política da Palestina por nossos talismânicos passaportes norte-americanos, graças aos quais passávamos pelos funcionários da alfândega e de imigração com o que parecia ser uma facilidade risível, comparada com as dificuldades enfrentadas pelos menos privilegiados e menos afortunados naqueles anos de guerra e pós-guerra. Minha mãe, porém, não tinha um passaporte norte-americano.
Depois da queda da Palestina, meu pai empenhou-se seriamente - até o fim da vida - em tentar obter algum documento norte-americano para minha mãe, mas não conseguiu. Como sua viúva, ela tentou até o fim e também fracassou. Restrita a um passaporte palestino logo substituído por um laissez-passer, minha mãe viajava conosco como um empecilho levemente cômico.
Meu pai contava rotineiramente a história de como o documento dela era colocado embaixo da nossa pilha de vistosos passaportes verdes dos Estados Unidos, na esperança vã de que o funcionário da imigração a deixasse passar como um de nós. Isso nunca acontecia. Havia sempre a entrada em cena de um agente mais graduado que, com ar circunspecto e voz grave, chamava meus pais de lado para explicações [...]. Quando finalmente passávamos, o significado da anômala existência dela, representada por um documento embaraçoso, nunca era explicada a mim como a conseqüência de uma dilacerante experiência coletiva de expropriação.

Edward Said*, "Fora do lugar - Memórias"
Companhia das Letras, 2004

* Nascido em Jerusalém em 1935, Edward W. Said viu seu país, a Palestina, desaparecer treze anos depois, substituído pelo Estado de Israel. Desde então, viveu no Egito, no Líbano e nos Estados Unidos, sempre carregando a condição de apátrida e a sensação de estar "fora do lugar". De família cristã em nações de maioria muçulmana, palestino com cidadania norte-americana, alfabetizado simultaneamente em inglês e árabe, Said relata o doloroso processo de construção de sua identidade num mundo em convulsão.

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