quinta-feira, janeiro 19, 2006

Sangue do meu sangue*

Marianne preferia pensar em como poderia ser pior. Mentalmente, fazia listas enquanto massageava seus clientes. Lucas não incendiava nada, não fugia de casa, não batia nas pessoas com tijolos ou bastões, não estrangulava nem estuprava pessoas, nem torturava animais. Era só um pouco maluco.
“Mas que palavra”, pensou ela. Marianne já havia cruzado com ela muitas vezes – essa palavra e outras. Insano. Anomalia. Psicopata. Agora, elas caíam de sua boca por acidente, como sapos. Ela sentia as palavras escorregando para fora e caindo no chão. [...] Marianne engolia a sensação pantanosa em sua garganta e enchia as palmas das mãos de óleo. [...]

No corredor, Richard preenchia os formulários médicos junto com a enfermeira. Ele parou no bebedouro no caminho de volta para a sala de espera. O jato era fraco, mas foi bom para molhar os lábios. Ele ligou para a Dra. Snow do telefone público, de olho em Lucas, sentado num canto com o rosto afundado numa revista.
- Os remédios não estão funcionando.
- Às vezes isso acontece.
- Ele está ficando pior.
A Dra. Snow suspirou.
- Ataque a irmãos é bastante comum – ela sugerir terapia familiar. Marcou uma sessão para o dia seguinte. Eles deviam ir para casa e descansar. – Peça comida chinesa – aconselhou ela. – Alguma coisa leve.

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Quando o carro estacionou na entrada de carros, Richard viu a vizinha. Ele entendeu que alguma coisa estava errada pelo modo como a blusa dela estava torcida.
- Não sei o que fazer – disse ela enquanto Richard baixava a janela. – Minha gata não quer sair do seu quintal. [...]
- Essa não é uma hora muito boa.
- Está tudo bem – disse Marianne. –Eu a levo – ela pôs as chaves no bolso e tirou Sarah do carro. [...] Um grande curativo branco estava colado na testa de Sarah e Richard podia ver uma seção de careca onde o médico tinha raspado o cabelo da menina. [...]
- E então? – perguntou Richard. – Qual é o problema?
A gata estava no quintal, para em um dos cantos do jardim.
- Lamento muito por isso – disse a vizinha. – Normalmente eu consigo convencê-la a ir para casa – o rosto tremeu um pouco quando ela se aproximou da gata laranja. – Vem agora, querida – a gata sibilou e bateu na mão da mulher, depois correi de volta para o canto. [...]
A barriga vazia da gata balançava, os mamilos se arrastavam no chão. Quando chegou mais perto, Richard viu que seus bigodes tinham sido cortados. Ele sabia que cortar os bigodes era o mesmo que cegar; os animais os usavam para sentir aquilo que seus olhos não podiam ver. Richard deu uma olhada na casa. As cortinas estavam fechadas.
Foi até onde a gata estava sentada e futucou o chão com o pé. O sapato de Richard afundou na terra macia e, quando ele tocou o que tinha sido enterrado ali, sentiu seu ânimo desabando junto com a ponta do seu sapato, um mergulho na tristeza. Ele pensou no que estava surgindo. Havia vermes, ele podia senti-los, e grãos minúsculos abriam caminho, entrando em suas meias.

Hannah Tinti, "Verdadeiros animais"
Editora Rocco, 2004

*São 11 contos, este é o décimo. Em todos, os animais são personagens que correm à margem; se ausentes, porém, não haveria sentido para as histórias. Um livro que eu gostaria de ter escrito. O título em inglês é "Animal crackers", aqueles biscoitinhos em forma de bicho - aliás, foi assim que a editora original fez a divulgação: distribuindo latas desses biscoitinhos para a imprensa junto com o livro.

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