quarta-feira, setembro 20, 2006

Diurno



Foi então que conheci Teresa, em toda sua intensidade e doçura - pois Teresa também era isso: doçura. Ela parecia bossa-nova. Parecia uma música de Tom Jobim. E por que é que eu também não fui feliz? Bobagem achar que a vida cabe num verso, cabe no bolso, cabe no espaço que sobra entre dois corpos quando nenhum espaço parece separá-los.

[...]

A primeira vez que vi Teresa, reparei nas pernas. Achei estúpidas. Mais curioso ainda, achei que a cara parecia uma perna. Na festa, ela dançava. Eu devia apagar dos ouvidos a música tecno e inventar outra trilha sonora para Teresa. Ela dançava sozinha no meio de todo mundo com aquelas suas pernas estúpidas que terminavam em pés metidos num par inacreditável (e estúpido) de saltos. Até hoje não sei como as mulheres conseguem, os saltos. Dançar, ainda por cima. Acabei inventando mesmo uma trilha sonora para Teresa, quando, no dia seguinte, descobri que ela era bossa-nova. Mais tarde, invadi sua estante de CDs com um silencioso carregamento de Joões Gilbertos e Tons Jobins. Também levei Stravinsky e Pixinguinha. Ensinei para Teresa que a gente não deve dizer chorinho, que o nome é choro, sem diminutivo.

[...]

Quando Teresa morreu, pus para tocar o Réquiem de Stravinsky. Foi o enterro dela, porque não chegaram a encontrar o corpo, perdido nas águas de Mangaratiba. Ouvi Stravinsky. E chorei, é claro.

Adriana Lisboa, "Um beijo de colombina"
Editora Rocco, 2003

2 comentários:

Anônimo disse...

" A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas."

(Manuel Bandeira)


Ela copiou Manuel Bandeira?!

Suzana Elvas disse...

Bandeira era o tema da dissertação de doutorado dela, começando por esse poema. E o que seria um trabalho acadêmico criou asas e virou um romance delicado e primoroso. Recomendo, sempre.