quarta-feira, junho 04, 2008

A culpa é dela



Quando era bebê, minha avó trocou a fralda de minha mãe antes de ela dormir, vestiu um lindo macacão francês de flanela (bordado à mão, fecho eclair de alumínio - um luxo nos anos da guerra) e... nada. "Por que essa menina chora tanto?" Mamadeira, dengo, colo, bolsa de água quente, cantigas de ninar, colo da avó (dela), colo do avô (idem), colo do pai (ibidem), bichinhos, papinhas, suco... nada. Oito horas ininterruptas de choro profundo, doloroso, sofrido. Às seis da manhã do dia seguinte, a fralda vaza e minha avó começa a trocar a filha. Ao abrir o macacão, o choro parou na hora: o zíper havia pego a pele do pescoço da minha mãe.
Até hoje ela tem, na linha da garganta, um quadradinho de pele saltado.

Aos quatro anos, vestida primorosamente como que para um baile, cabelos cacheados repletos de fitas de cetim, ela esperava sua vez de pegar o pão, junto com os três irmãos mais velhos, na fila por comida durante a guerra.

- Rá, mas ela não tem meisssssssssssssmo 55 anos. Eu tenho 67 anos e estudei com ela no Escola Normal. E ela era uma turma na minha frente!
Comentário feito (em alto e bom som) a jornalistas presentes a um jantar-homenagem para uma conhecida socióloga.

Eu tinha uns sete anos, minha mãe dirigia pela Rua Paissandu, no Flamengo, conosco no banco de trás do fusca (ela sempre dirigiu fusca; depois de seis cores diferentes, meu pai deu um ultimatum: ou escolhe outro carro ou não ajudo a comprar. Ela comprou uma Belina, lembra? Aquela banheira com hidromassagem atrás? Pois então). Saindo de uma garagem do nada, um Opala adentra calçada, rua e porta do carona. Ela sai do carro com cara de paisagem, o cara diz que a culpa é dela e emenda um "Sabe com quem está falando? Sou reitor da universidade tal!". Ela pede pra ver os documentos. Nós, mudos, no banco de trás. Ele saca a carteira do bolso e começa a abri-la. Ela, num movimento além do olho humano, arranca a dita do cujo, corre pro fusca e, saindo em disparada (sob nossa salva de palmas), grita pela janela: "Só devolvo depois que você pagar o prejuízo!".
Ele pagou.

Andando pelo centro do Rio, fazendo compras no Saara. Loja estalando de nova. Ela entra e começa a escolher coisas. Na hora de pagar, espalma a mão aberta no colo, faz cara de sonsa e manda um "Vou ter desconto, não é? Afinal, sou freguesa antiga!"

Ela vem:
- ... e sua irmã então comprou e mandou para ele. Você não acha que ela está certa, não é?
- [...?]
- Afinal de contas ele deixou bem claro que ...
E vai-se embora. Minha mãe aperfeiçoou a um nível jamais imaginado de requinte e sofisticação a antiga e nobre arte de falar sozinha - com os outros.

Se o arroz tem a cebola picada normal, meu pai quem fez; se é picado miudinho, foi minha irmã; eu ralo a cebola. Se ao abrir a panela você achar uma cebola cortada em dois (sim, em dois), a culpa é da minha mãe.

Barbantes, sacolas de plástico e de papel (a mais velha é das Casas da Banha, perfeitamente preservada), cremes hidratantes vencidos em 1987, arames de embalagem de pão, jornais velhos, caixas de papelão & similares (de todos os tamanhos, incluindo as de mudança), cortes de tecidos comprados nos anos 70, roupas que eu imaginava doadas aos pobres na década de 80, papéis de presente usados, fitas idem, cadernos/livros preparatórios para o vestibular (1985), estoque de material escolar comprado quando eu estava no primário (circa 1975).
Quando ela morrer, vou precisar de uns três acres no São João Batista, se ela quiser levar isso tudo.

Na foto, minha mãe com um vestido tão adorado e usado, mas tão que, nas palavras da minha avó, "caiu do corpo de cansaço".

Um comentário:

Marilia disse...

Linda, a sua mami.
Adoro quando vc reaparece escrevendo esses posts incríveis.

E, não, ainda ninguém pra sonhar junto comigo com uma casinha de sapê.

Mas essa busca é cada dia mais importante pra mim, cê acredita?

Beijo giga!