terça-feira, novembro 04, 2008

Caderno de notas



Ignorava quase tudo dessas mulheres; a parte que entregavam das suas vidas cabia entre duas portas entreabertas. Seu amor, do qual falavam sem cessar, parecia-me por vezes tão leve quanto uma de suas guirlandas, como uma jóia da moda, um ornamento caro e frágil. Imaginava-as ataviando-se com sua paixão tal como usavam o carmim ou colocavam seus colares. [...] Acabei por compreender que o espírito do jogo exigia esses perpétuos disfarces, esses excessos nas confidências e nas queixas, esse prazer ora aparente, ora dissimulado, esses encontros planejados como os passos de uma dança. Mesmo nas disputas esperavam de mim uma réplica antecipadamente calculada, e a bela mulher desfeita em lágrimas torcia as mãos como num palco.

Tenho pensado freqüentemente que os amantes apaixonados pelas mulheres se prendem ao templo e aos acessórios do culto tanto, pelo menos, quanto à sua própria deusa. Deleitam-se com os dedos tintos pela alcana vermelha, com os perfumes na pele, com os mil artifícios que realçam a beleza e, por vezes, fabricam-na por completo. [...] Dificilmente se poderia dissociá-las da doçura febril de certas noites de Antioquia, da excitação das manhãs de Roma, dos nomes famosos que usavam, do ambiente de luxo em que o maior requinte era mostrarem-se nuas, mas jamais sem seus adereços.

Eu teria ambicionado muito mais: queria a criatura humana despojada de tudo, sozinha consigo mesma, como teria sido forçoso que estivesse algumas vezes na doença, ou depois da morte do primeiro filho recém-nascido, ou frente a uma primeira ruga adiante do espelho. Um homem que lê, pensa ou calcula pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos ele escapa inclusive ao humano. No entanto, minhas amantes pareciam vangloriar-se de não pensar senão como mulheres; o espírito ou a alma que eu buscava ainda não era mais que um perfume.


Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano"
Tradução de Martha Calderaro
Editora Nova Fronteira, 1980.

A cada vez que encontro alguém sempre me cobram os adereços; estou ainda a esperar aquele que queira apenas a "criatura humana despojada de tudo, sozinha consigo mesma".

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