quinta-feira, setembro 17, 2009

Preliminares




No Monte Verità, o homem olha a estátua. O homem é negro e baixo. A estátua é abstrata (um vazio dentro de um círculo) e foi esculpida muito tempo atrás por um escultor chamado Hans Arp.

Monte Verità é o nome de um hotel localizado na parte italiana da Suíça, em Ascona. Nos jardins do Monte Verità, o homem negro se encosta na estátua abstrata. Pousada em seu braço, uma exuberante arara-verde come biscoitos na palma da sua mão. Faz bastante frio e talvez neve, o que não combina com o homem, muito menos com a arara, mas combina com a estátua. [...]

A arara deve ter emigrado da África, não se sabe fugindo de quê. O home também emigrou da África, mais especificamente de Moçambique, fugindo das sucessivas guerras no seu país. Embora formado em Economia, ele trabalha no hotel como garçom. É o que lhe permitiram. Nos sucessivos congressos que se realizam no estabelecimento, diverte-se falando com os hóspedes na língua de cada um deles: italiano, alemão, francês, espanhol, grego, japonês, mandarim, enfim, português.

Em geral, os estrangeiros primeiro se espantam, quando o garçom se dirige a eles na sua língua, e depois se divertem, como se ouvissem aquela arara falar. [...] Agora têm uma boa história para contar em casa.

...

Manuel gostaria de escrever sobre a filha. Na cidade de Maputo, ele trabalhava tanto, para sustentar a família, e estudava tanto, para realizar seu único sonho, que mal a via em casa quando ela era criança.

Depois, a sua esposa morreu.

Depois, ele precisou fugir de repente, minutos antes de poder pegar a menina na escola.

Todo dia, ele se pergunta até que horas ela o ficou esperando na escola, sentada quietinha numa cadeira baixa na sala da diretora. Quem sabe a diretora, penalizada, lhe teria emprestado lápis de cor para desenhar.[...]

Seus pais nunca brigaram ou gritaram com ela. Até que a mãe, primeiro, a abandonou. Na verdade, a vida é que a abandonou: ela foi assassinada dentro da igreja e caiu para trás largando a mão da menina, que não chorou. A menina apenas olhou para o assassino uniformizado. Por alguma razão, talvez por conta desse olhar mesmo, ele não a matou, contentando-se com os vários corpos bem vestidos, roupa de domingo, que deixou estendidos no chão.

Manuel, em casa, aproveitada o silêncio da hora da missa para estudar Economia. O silêncio foi bruscamente interrompido pelo som sincopado dos tiros no quarteirão próximo. Ele levou alguns segundos para se mover porque imediatamente imaginou o que poderia ter acontecido. Quando o fez, correu para a igreja, desabalado e desesperado. No meio do caminho cruzou com os uniformes que, cínicos, sorriram para ele e para os outros que, como ele, procuravam adiante os parentes.

Na igreja, encontrou viva apenas a filha, ajoelhada ao lado do corpo da mãe. No altar, o padre também estava morto. Como contava a sua mulher, rindo, ele era um padre cético, cheio de dúvidas sobre Deus e sobre a sua vocação. Agora, ele não tinha mais dúvidas, era apenas um padre morto.

Manuel, não sabe como, conseguiu passar por cima dos demais corpos para cair de joelhos e abraçar a menina. Com os olhos secos, ela o olhou e disse, calma: "Papai, Deus chegou atrasado."

Gustavo Bernardo, "Monte Verità"
Editora Rocco, 2009

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