quinta-feira, maio 05, 2011

De quem é o funeral?



Começo no século XIX porque foi nesse período, mais do que em qualquer momento anterior, que os homens vestiram preto; e também porque essa é a época em que o preto da roupa masculina é percebido como problemático - algo que intrigava os homens, ao mesmo tempo que se vestiam de negro. O preto servia evidentemente de distinção entre os sexos: o que incomodava os comentaristas da época não era isso, mas o fato de que, cada vez mais, os homens pareciam optar pela vestimenta da morte. Alfred de Musset achava le deuil (o luto) que os homens trajavam un symbole terrible. Outros concordavam,comentando a nova moda com espanto, como se um mistério sombrio se revelasse na roupa do dia a dia.

Até então, homens e mulheres haviam usado várias cores. Na Idade Média, os homens se vestiam esplendidamente se possuíam meios para tal. Mesmo os pobres vestiam várias cores (marrom e verde, um chapéu vermelho ou azul), como mostram as iluminuras medievais. Na Renascença, o preto esteve na moda, mas ainda assim estava longe de ser usado por todos. E os homens usavam cores no século XVIII, e mesmo nas primeiras décadas do XIX. Mas, a partir de então, a roupa masculina torna-se cada vez mais austera e mais escura; se consultarmos os jornais de moda da época, poderemos ver a morte das cores, peça por peça, em alguns poucos anos. Já nos primeiros anos da década de 1830, a casaca de noite e a casaca longa eram normalmente pretas (mesmo que também pudessem ser azul-escuras). Na mesma época, as calças poderiam ser brancas no verão (elas já não eram mais coloridas), mas no final da década de 1830 "calças ou pantalonas pretas eram a regra". Nem mesmo a gravata resistiu por muito tempo: em 1838, The Gentleman's Magazine of Fashion observa que a gravata branca "fora afastada de toda boa sociedade por George IV. Ele descartou a gravata branca e a preta tornou-se a moda universal". Durante alguns anos, o colete foi o último reduto da cor, mas em maio de 1848 The Gentleman's Magazine of Fashion nota que "o tecido para coletes é seda ou popelina, negra ou branca".

As mesmas mudanças aconteciam simultaneamente na França, onde, em 1850, o Journal des Tailleurs registrava que a vestimenta formal do homem agora consistia exclusivamente de un habit noir, un pantalon noir, un gilet blanc et un autre noir; une cravate noire et une autre blanche ("um casaco preto, uma calça preta, um colete branco e outro preto; uma gravata preta e outra branca"): Théophile Gautier lamentava em seu ensaio De la mode ("Da moda") que o vestuário masculino tornara-se si triste, si éteinte, si monotone ("tão triste, tão apagado, tão monótono").

Nem tudo, no entanto, era preto. Calças e coletes podiam ainda ser brancos ou quase-brancos, e na sobrecasaca os tons escuros de verde, azul e marrom faziam aqui e ali breves reaparições. Mas todas as cores vivas haviam desaparecido sem deixar lembrança, o tom era escuro, a cor dominante era o preto. [...] É possível demonstrar a redução cromática que acontecera se comparamos as roupas elegantes usadas naqueles anos com as que se usariam nos bailes a fantasia. Pois a "fantasia" era aquela roupa usada em outros países, e em outros tempos; e de acordo com ilustrações do período, tais roupas eram cheias de cor, e era isso que as tornava luxuosas. Fora isso, as cores estavam restritas aos uniformes militares, especialmente ao uniforme de cerimônia, que se tornava assim uma espécie de "fantasia" séria.

Os jovens cavalheiros de 1842 são tecnicamente vitorianos (a rainha Vitória subiu ao trono em 1837), mas ainda não são vitorianos graves: são homens da cidade, ainda jovens e bem dispostos. E como as ilustrações de moda tendem a usar a juventude como representação de glamour, custou um pouco para que começassem a refletir a nova atmosfera de seriedade e probidade moral, que mais tarde viria a ser sinônimo de "vi-toriano". Uma tal figura pode, no entanto, ser vista numa gravura de moda de 1851, onde o homem sentado, apesar de um rosto jovem e corado, como o gênero exigia, já apresenta uma papada, suíças grisalhas e uma boa amostra de cabelos brancos. Não está claro se ele deve ser visto como pai ou avô: os pais da época poderiam ter jeito de avô. De qualquer maneira, ele está sentado com a dureza, a austeridade, a rígida verticalidade que Dickens atribui a muitos de seus personagens - características que o autor da ilustração tenta apresentar como sinal de elegância. Esse jovem senhor também veste preto, como o fará durante a maior parte de sua vida.

Era uma grande mudança. Os homens queriam vestir-se numa espécie de luto elegante, e, como resultado, o século XIX parece um funeral. E era visto como um funeral pelos escritores da época. Baudelaire escreveu sobre a casaca: "Não é este o inevitável uniforme de nossa época sofredora, carregando nos ombros, negros e estreitos, o símbolo de um luto perpétuo? Estamos todos celebrando algum funeral". A mesma idéia era expressa por Dickens na Inglaterra, que em seguida estendeu o conceito, indo das roupas aos edifícios, e mesmo à cidade. Em "Grandes esperanças", quando Pip chega a Londres, ele encontra a Bernard's Inn como que vestida "de um luto embolorado de fuligem e fumaça", e quanto ao Sr. Jaggers, sempre vestido de roupas tão negras quanto suas suíças, sua "cadeira de longo encosto era de um lúgubre pêlo negro de cavalo, com uma fileira de pregos em bronze, como um caixão". Imagens poderosas e macabras atravessam a obra de Dickens, especialmente em suas novelas mais tardias, que vêem a vida na Inglaterra, e a vida em Londres, como um funeral assustador, um funeral aterrorizante porque interminável.

John Harvey, Homens de Preto (tradução de Fernanda Veríssimo)
Editora Unesp, 2004

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