terça-feira, agosto 30, 2011

Day 21: The best book you’ve read this year



O coronel Justo Sacrossanto cansou-se durante a manhã recebendo, em Fortaleza, correligionários interioranos [...]. Apesar do sobrenome, de sacrossanto não tem nada, ao contrário, tem fama de diabólico, o que não é novidade em se tratando de coronel a toda prova, despótico, cruel, temido. De estatura mediana, barriga pronunciada, braços e mãos enormes em proporção ao tronco. Apresenta um defeito congênito, um aleijão, não tem o braço esquerdo ou, melhor, tem, mas é outro braço direito no lado esquerdo do corpo. Resumindo, tem dois braços direitos, porque o do lado esquerdo se apega ao ombro virado para fora, como se fosse, e é, outro braço direito. Não consegue bater palmas como todo mundo, porque a mão que seria a esquerda é réplica da direita. Além do mais, não é de aplaudir. Nem precisa. [...]

Embora a obediência seja ato aprendido, não interessa se ensinado a porradas, às vezes é como questão de fé e, no caso, acredite quem quiser, ambas as mulheres são mudas de verdade. A mais alta teve a lingua cortada porque falou o que viu com quem não devia ou com quem amava em segredo. O manda-chuva mandou cortar-lhe a lingua port castigo, ciúmes e justiça, pois, se Deus manda lá em cima, cá embaixo manda o coronel Sacrossanto, ao menos nos seus domínios, o que não é pouco. Além do mais, acha que mulher muda é bicho quase perfeito: sem lingua, perde o ranço de víbora, e a boca chuca melhor.

Ordem dada, melhor cumprida, que um suspiro do coronel tem mais força que decreto de presidente da República, e, mal a ordem sai da boca, aquilo que deve ser feito já voa. [...] A outra, quase uma menina, também é muda, mas, parece, nada fez de incorreto. Corre entre a vassalagem da casa - pelo menos uma dúzia, do guarda-costas à cozinheifra - que o coronel mandou-lhe cortar a lingua somente por precaução, estratégia copiada do capitão Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. O coronel sempre se benze quando alguém fala do capitão ou do seu padrinho de batina. Claro: foi Padre Cócero quem deu, em pape, timbrado, a patente do cangaceiro. Mas o apelido, no sertão se sabe, veio da escuridão que o cabra iluminou a tiros de rifle para achar um cigarro, dizendo: "Acende, lampião!"

O coronel está relendo o título da notícia ao pé da primeira páginma de "O Democrata, jornal comunista, vez ou outra empastelado pela polícia. Mas, quando o jornal sai, o coronel trata de ler até mesmo suas entrelinhas para seguir de perto as urdiduras, as tranças do inimigo. Segura o jornal com a mão direita da direita. A notícia foi motivo de refrega que passou na cambada pela manhã. Afinal de contas, nenhum dos seus mandatários sabia ao certo o que responder. O coronel meteu-lhes o dedo na cara, dizendo que as coisas aconteceram na barba deles:

"E homem pra ser homem, ou sabe mandar, ou sabe obedecer; do contrário, a barba que tem na cara devia crescer noutro lugar."

Não deu pormenores sobre o lugar onde a barba cresceria, supondo que, na cabeça de cada ouvinte, as conjecturas do medo meteriam a barba no lugar certo.

O livro dos desmandamentos (Profecias de um excluído)
Carlos Trigueiro
Bertrand Brasil, 2004


Não me canso de ler. E o autor está lançando livro novo em setembro. Só uma coisa a dizer: oba!

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