quarta-feira, dezembro 05, 2012

Pai Nosso

Não consigo entender, casou tão apaixonado pra terminar assim, batendo a porta na minha cara, me chamando de tanta coisa...

Depois de dias de tanta chuva, o dia estava lindo. O céu extremamente azul. Eu pensei comigo vou prestar atenção em todos os detalhes. No vento que balançava a copa dos eucaliptos, no silêncio, nas flores à beira da estrada, em como alguém pode usar tanto azulejo e na cor nova que o dono escolheu agora para pintar a sua vendinha.

Maria depois me perguntaria Mamãe, o que são "minhas pêndices"? E eu engasguei porque, você sabe, não se chora de tristeza e se gargalha ao mesmo tempo. É "meus pêsames", filha. Pêsames me irritam. Sempre me irritaram. Antigamente, as gargalhadas também, até eu entender que podemos chorar e gargalhar ao mesmo tempo - mesmo sendo fisicamente impossível. Celebra-se a vida.

Meu pai jamais foi uma pessoa fácil de se conviver. Ficar velho estava fora de cogitação. Porque velhice é igual a dependência, lentidão, desprezo, desrespeito. Esquecimento.

Eu preciso ir lá. Eu não vi seu pai, preciso ir lá.

Minha filha foi até a capela, mãos dadas com minha mãe. Eu não fui. Fiquei do lado de fora, milhares de mosquitos a me picarem pernas, braços, orelhas, a despeito dos litros de repelente. Não importava. Um calor obsceno, sufocante, só as copas dos eucaliptos balançando lá no alto. Beija-flores, bem-te-vis. Tanto azulejo nos túmulos. Alguém lá dentro puxou uma Ave Maria. Ele não gostou, tenho certeza. Pra ele, somente o Pai Nosso - a única oração que Jesus ensinou ao homem.

E por que não me sinto culpada? Eu devia sentir culpa pelo alívio.

Meu pai tirou um tumor do cérebro mês passado. Depois da operação, o físico curou-se, o mental foi-se. Ele passava os dias procurando por meu avô, que morreu em 2001 - os dois brigados por uma bobagem que nem lembro mais qual. Domingo, saiu de casa de madrugada e caiu num córrego que passa dentro do sítio. Passou a noite na lama e no frio - minha mãe só o achou às sete da manhã. Quarta, voltou do hospital com o pé fraturado e uma leve falta de ar. Minha mãe subiu para preparar o quarto e ele, depois de dizer que não conseguia respirar, qual a música infantil deu três suspiros e morreu. Rapidamente, como queria. Sem ter ficado preso a uma cama, como ele queria. Sem ter ninguém a trocá-lo, alimentá-lo, virá-lo, lavá-lo - como ele queria.

Meu pai morreu. Minha mãe não viu quando ele se foi. Eu não vi meu pai morto. Ela sente culpa porque, depois de 51 anos de casados, ele a humilhava, maltratava, xingava, ignorava - o neurocirurgião nunca vira antes um Alzheimer tão agressivo. Ela sente culpa porque a morte dele foi um alívio. Ela pode agora voltar a viver. Pode dormir, pode comer o que quiser, pode usar sapatos e não andar de meias em casa - o barulho o irritava. Falei com ele no sábado antes de ele cair no córrego, e ele me abençoou. Vi meu pai um mês antes, quando ele estava a caminho da sala de cirurgia, brincando com as enfermeiras e o anestesista. Beijei-o e disse Vou estar aqui, pai.

Eu estou aqui, pai - e você também, sempre.